Como muitos fãs da NBA já devem saber, de tempos em tempos a Associação de Jogadores (NBPA), a NBA e os gestores das franquias renegociam o Acordo Coletivo (CBA) — uma espécie de estatuto que regulamenta absolutamente tudo na liga. Com os novos contratos de TV recém-fechados, o dinheiro disponível vai continuar crescendo absurdamente e uma das finalidades do CBA é justamente buscar o equilíbrio financeiro e competitivo da NBA.
A forma encontrada para isso historicamente tem sido um escalonamento dos gastos que os times têm com folha salarial. Durante um bom tempo, havia três níveis na escala salarial: um teto salarial (salary cap, ou simplesmente cap) baseado na renda relativa ao basquete (BRI) gerada pela liga, um piso salarial (minimum team salary, ou salary floor) e um limite de taxação (tax level, mais conhecido como luxury tax), estes dois últimos calculados com base no teto.
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Basicamente, a função desses níveis salariais seria desestimular times que podem usar seu poder financeiro para levar vantagem competitiva — e, em última instância, proteger os donos mais afoitos deles mesmos. Alguém poderia perguntar: se o objetivo é esse, não seria mais fácil definir um teto salarial inflexível, o chamado hard cap? Na teoria, sim. Mas esse escalonamento existe porque os donos e os jogadores (especialmente os jogadores) resistem à ideia de um limite rígido de gastos. Um dos argumentos mais utilizados é que, se o gasto for limitado, os salários dos jogadores e a construção dos elencos poderiam ser impactados negativamente.
Um novo limiar
Seguindo essa filosofia de buscar equilíbrio, o CBA de 2011 introduziu mais um nível na escala salarial: o chamado apron, que pode ser traduzido como limiar. Esse nível ficava acima da luxury tax e definia quanto os times poderiam gastar acima do teto salarial e do limite de taxação sem incorrer em novas penalidades financeiras e administrativas. Passaram-se alguns anos, até que, no CBA de 2023, foi feita a mais recente modificação nesse escalonamento de níveis salariais: o apron de 2011 passou a se chamar 1º limiar (first apron) e foi criado um 2º limiar (second apron) seguindo a mesma lógica.
Agora que todos os níveis e limiares de escalonamento da folha salarial foram introduzidos, podemos explicar de forma mais estruturada como eles se organizam e, grosso modo, como são calculados. Para a temporada 2024-25, o panorama será o seguinte:
NÍVEL | VALOR (2024-25) | CÁLCULO |
Piso salarial (salary floor) | US$ 126,5 milhões | 90% do teto salarial |
Teto salarial (salary cap) | US$ 140,6 milhões | 44,74% da BRI* ÷ nº de times da temporada |
Limite de taxação (“Luxury”) | US$ 170,8 milhões | 121,5% do teto salarial |
1º Limiar (1st Apron) | US$ 178,1 milhões | 1º limiar 2023-24 x (teto 24-25 ÷ teto 23-24) |
2º Limiar (2nd Apron) | US$ 188,9 milhões | 2º limiar 2023-24 x (teto 24-25 ÷ teto 23-24) |
Impacto do sistema
OK, terminamos de apresentar a escala salarial completa, mas vamos ao que interessa: quais as implicações de estar acima ou abaixo desses níveis?
Começando pelo limite de taxação, a famosa luxury tax. Para ultrapassar do teto salarial, os times precisam usar exceções (tópico crucial, mas que exige outro artigo). Se os gastos, mesmo com exceções, ainda ficarem acima do teto, mas abaixo do limite de taxação, não há problema. Mas, se o time terminar a temporada acima dessa luxury tax, terá que pagar uma multa à NBA. Enquanto estiver acima do limite de taxação, o time fica na categoria de taxpayer, o que limita, entre outras coisas, quais exceções contratuais pode usar e quanto pode gastar nelas.
Um ponto importante: a taxa aumenta gradualmente, em patamares de cerca de US$ 5 milhões acima do limite de taxação. Nada no CBA é simples, mas resumidamente a taxação funciona do seguinte modo:
Patamar acima do limite de taxação (tax level/luxury tax) | Taxa em 2024-25 | Taxa a partir de 2025-26 |
0% a 100% (~US$ 5 milhões) | US$ 1,50 para cada US$ 1,00 | US$ 1,00 para cada US$ 1,00 |
100% a 200% (~US$ 10 milhões) | US$ 1,75 para cada US$ 1,00 | US$ 1,25 para cada US$ 1,00 |
200% a 300% (~US$ 15 milhões) | US$ 2,50 para cada US$ 1,00 | US$ 3,50 para cada US$ 1,00 |
300% a 400% (~US$ 20 milhões) | US$ 3,25 para cada US$ 1,00 | US$ 4,75 para cada US$ 1,00 |
Mais de 400% | +US$ 0,50 para cada 100% adicional | +US$ 0,50 para cada 100% adicional |
E não para por aí: se ficar acima do limite de taxação em três ou mais das últimas quatro temporadas, o time será considerado reincidente (repeater). Nesse caso, as multas serão ainda mais rigorosas, começando a partir de US$ 2,50 (US$ 3,00 a partir de 2025-26) para cada dólar acima do limite.
É por isso que os times fazem de tudo para evitar ultrapassar o limite. O Cleveland, por exemplo, calculou estrategicamente as renovações contratuais de Darius Garland, Donovan Mitchell e agora Evan Mobley para não entrar na temível luxury tax, coisa que não faz desde 2018. O Atlanta, por sua vez, trocou A.J. Griffin para o Houston e deixou Saddiq Bey sair para ficar exatamente abaixo do limite de taxação. Todas as temporadas, vários times fazem pequenos movimentos desse tipo, à primeira vista incompreensíveis, para evitar o problema de virar taxpayer.
Mas para onde vai esse dinheiro? Segundo o CBA, o valor arrecadado com essas taxas é distribuído para os outros times da liga que não ultrapassaram o limite de taxação (non-taxpayers), mas também pode ser usado pela liga para ajuda financeira de alguma franquia, conforme a própria liga entender melhor.
Uma coisa que pouca gente sabe é que nem só os gastadores são punidos: existe penalidade também para quem tenta economizar demais. Se um time terminar a temporada abaixo do mínimo definido no CBA para os gastos com folha, deverá pagar à NBA um valor equivalente à diferença entre a sua folha e o piso salarial da temporada. Além disso, esse time é excluído da divisão do valor monetário arrecadado com as multas.
Foi por essa razão que, ao fim da temporada 2021-22, o Oklahoma City Thunder deu um “extra” de mais de US$ 1 milhão para cada jogador. Mesmo jogadores contratados pelo salário-mínimo de US$ 2 milhões, por exemplo, receberam esse milhão extra. Ou seja, 50% a mais de salário no fim do ano… nada mal, hein? Naquele caso ali, o OKC tinha uma folha de US$ 79 milhões, muito abaixo do piso da NBA, que era US$ 101,2 milhões, e decidiu distribuir a diferença para o elenco para não ter que devolver dinheiro à liga e para não perder sua fatia da luxury tax.
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As penalidades do limite de taxação não foram suficientes para impedir que alguns donos mais abastados abrissem a carteira e usassem a vantagem financeira para deixar seus times mais fortes. O caso mais notório é provavelmente o multicampeão Golden State Warriors, mas o Milwaukee Bucks, o LA Clippers, o Minnesota Timberwolves e o Phoenix Suns também investiram rios de dinheiro para ter uma chance de chegar à taça. Com o CBA de 2023, no entanto, as coisas mudaram de figura: parece que só quem realmente tem uma perspectiva clara de competir decidiu manter esse nível de gasto.
A questão é que as punições financeiras e administrativas ficaram bem mais rigorosas, especialmente para os times acima do 2º limiar. Não à toa, as diretorias do Warriors e do Clippers parecem ter reavaliado suas chances e trabalharam para reduzir drasticamente sua folha salarial. Segundo Bobby Marks, da ESPN, ao fim da temporada 2023-24, esses dois times (ambos reincidentes) iriam pagar, respectivamente, US$ 177 milhões e US$ 142 milhões só em multas da luxury tax. Após cada um abrir mão de um all-star, Klay Thompson e Paul George, o gasto do Warriors com taxação caiu para US$ 14 milhões e o do Clippers caiu para US$ 6 milhões.
Quem tem medo do 2º limiar?
Afinal, quais são então essas punições que estão botando medo em franquias que estavam com a mão aberta na última década? Além do incremento na taxação (já mostrado acima), foram instituídas limitações administrativas muito drásticas para os dois limiares. As principais são:
- Ao ultrapassar o 1º limiar, o time:
- Não pode adquirir jogadores via sign-and-trade.
- Não pode usar exceções de troca (TPEs) criadas na temporada anterior.
- Não pode usar a exceção de troca bianual (BAE).
- Não pode receber mais salário do que está mandando numa troca.
- Automaticamente ativa o 2º limiar se contratar jogadores usando sua exceção de nível médio de taxpayer (TP-MLE).
- Não pode contratar um jogador dispensado durante a temporada cujo salário tenha sido maior que a exceção de nível médio de non-taxpayer (NT-MLE, US$ 12,8 mi).
- Ao ultrapassar o 2º limiar, o time:
- Não pode adquirir jogadores via sign-and-trade.
- Não pode contratar um jogador dispensado durante a temporada cujo salário tenha sido maior que a exceção de nível médio de non-taxpayer (NT-MLE, US$ 12,8 mi).
- Não pode contratar usando sua exceção de nível médio de taxpayer (TP-MLE).
- Não pode usar uma exceção de troca criada numa sign-and-trade anterior.
- Não pode agregar vários jogadores para igualar o contrato de um jogador numa troca.
- Não pode mandar dinheiro numa troca.
Além dessas, há punições relativas ao draft para quem ultrapassar o 2º limitar. A primeira é o “congelamento” da escolha de 1ª rodada futura da 7ª temporada (a contar da atual). Um exemplo para esclarecer: digamos que o time fique acima do 2º limiar nesta temporada (2024-25), nesse caso não poderá trocar sua escolha de 1ª rodada de 2032. O time terá que ficar fora do 2º limiar em três dos quatro anos seguintes para “descongelar” essa escolha de 2032.
A segunda, ainda mais severa, é chamada “Draft Pick Penalty”. Continuando o exemplo acima: se, no espaço de quatro temporadas, esse time ficar acima do 2º limiar em duas ou mais — ou seja, não conseguir “descongelar” a escolha de 1ª rodada de 2032 —, ele irá para a última posição da 1ª rodada. Isso mesmo: independentemente de qual era sua posição pelas regras normais de draft da NBA, ele terá que escolher na 30ª posição.
É claro que todas essas limitações impostas aos times acima dos aprons exigiriam explicações detalhadas (principalmente, em relação às exceções), mas de modo geral é possível perceber o quanto as franquias serão impactadas caso decidam bancar essa situação financeira.
Hard cap?
Antes de concluir, é preciso abordar um último tema. Ao dizer que não há teto inflexível na NBA, é preciso apontar uma exceção: há situações em que se fala em “hard cap”, ou seja, em que um time não pode ultrapassar, de maneira alguma, um certo limite (mais especificamente, o 1º ou 2º limiar). Que fique claro: em nenhuma das quase setecentas páginas do CBA existe menção a um “hard cap”, pelos motivos que já foram explicados. Mas, na prática, é possível acontecer.
De acordo com o site Spotrac, há doze times que no momento estão hard-capped no 1º limiar para a temporada 2024-25 e outros quatro limitados ao 2º limiar. Acontece que certos tipos de transações ou movimentos ativam esse hard cap. O mais comum é a conhecida sign-and-trade, em que um jogador livre (free agent) renova com o time do qual acabou de sair para imediatamente ser trocado para outro. Nesse caso, o time que recebe o jogador aciona para si um hard cap. Outra forma comum de acionar esse dispositivo é usar a exceção bianual. Nessa situação, o time não pode contratar ninguém, nem mesmo usando uma das várias exceções (de jogador lesionado, de troca, de salário-mínimo, etc.), se a transação implicar ultrapassar do limiar definido. Não vale a pena aqui abordar todos os casos, mas fica o registro dessas situações.
Já deve ter dado para perceber que o CBA não é uma coisa muito fácil de se ler e muito menos de compreender. Existem algumas fontes, não muitas, de consulta. Na maioria das vezes, uma pesquisa simples permite encontrar explicações básicas ou simplificadas sobre os principais pontos. No fim das contas, pode parecer muita nerdice, mas a verdade é que a construção de elencos é uma parte fundamental (e muito divertida) para os fãs da NBA, e conhecer ao menos um pouco desse sistema salarial permite especular com um pouco mais de realismo na trade machine ou pelo menos entender alguns movimentos que seu time fez. O lado bom é que o CBA não deve mudar nem tão cedo…
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